Suzane Richthofen jamais terá o direito de ser esquecida

“Há uma fixação perversa da sociedade por Suzane Richthofen, de modo que ela está condenada eternamente a ser quem foi na adolescência. Nós retiramos dela a oportunidade de morrer e reexistir, e gozamos com isso. Para mim, o caso Suzane Richthofen é a demonstração mais completa de como a sociedade brasileira é grotesca e violenta”. As palavras são de Roger Franchini, autor de Richthofen – o assassinato dos pais de Suzane (Planeta, 2011).

Suzane matou os pais, justamente no mesmo mês em o aspirante a escritor Franchini ingressava na carreira de investigador da Polícia Cível de São Paulo e a grande tragédia que destruiu uma família, mais tarde acabou se tornando uma obra importante da literatura brasileira. Na obra o autor registra, além do crime, uma realidade do trabalho da polícia que a sociedade ignora. Enquanto as histórias convencionais se esforçam em criar a polícia dos sonhos da classe-média, Roger vem noutra direção.

Sobre estes e outros assuntos conversei abertamente com mais um Escritor Brasileiro: Roger Franchini, autor da coleção Grande Crimes da Editora Veneta e vários outros títulos com a Editora Planeta. Livros que como ele mesmo diz: são de histórias reais, até que eles as desminta.

Abaixo, vamos saber um pouco da sua história, de suas estratégias enquanto escritor, da vida e da realidade de quem se dedica a produzir literatura no Brasil e que já tem vasta experiência as nesse campo.

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CK – Roger Franchini é advogado e escritor e já foi policial civil. Como você se define, onde vive e o que gosta?

Franchini – Minha formação é essencialmente jurídica, mas também fui aluno da faculdade de cinema da Universidade Federal de São Carlos antes de me encontrar com o Direito. A polícia apareceu para me salvar; sou grato à instituição porque me permitiu continuar estudando e comer três vezes ao dia.

Talvez, se não tivesse passado pela experiência acadêmica com a arte, eu não teria conseguido suportar o cotidiano dos fóruns e dos plantões.

Ao mesmo tempo, a perspectiva que hoje tenho da literatura é construída a partir do processo de formação do Estado e dos interesses dos grupos políticos que lutam pela manutenção do poder, o que me deixa desconfortável para me definir como escritor e também como jurista, no conceito tradicional burguês de ambos. Moro em São Paulo e gosto de tomar café com leite pela manhã.

CK – Vários são os seus livros publicados: Richthofen – o assassinato dos pais de Suzane (Planeta, 2011), Toupeira – a história do assalto ao Banco Central (Planeta, 2011), Amor esquartejado – A investigação do assassinato do executivo japonês (Planeta, 2012), Matar alguém (Planeta, 2014) e Ponto Quarenta – a polícia civil de São Paulo para leigos, lançado em 2009. Esses são frutos reais da sua vida de investigador ou são ficções baseadas na vida real?

Franchini – Meus livros nasceram da experiência da vivência policial. Eu já escrevia antes disso, mas o limite da humanidade que encontrei nas delegacias me permitiu traçar parâmetros éticos para construir personagens que me convenceram da necessidade de existir. Gosto de dizer que minhas histórias são reais, até que eu as desminta. Tento buscar histórias concentradas no personagem, sem criar muitas expectativas em relação ao enredo, à concatenação lógica dos fatos que o orbitam, como é na vida. A coleção Grandes Crimes, lançada pela Editora Planeta do Brasil, é um exercício narrativo muito próximo do que fiz enquanto investigador: reconstruir crimes recontando os atos dos personagens. A diferença é que, ao contrário do que fazia nos inquéritos policiais, esses livros me permitiram lançar conflitos humanos aos personagens e aprofundar-me em seus aspectos psicológicos.

CK – Você foi um dos investigadores do Caso Suzane, ou você criou todos os personagens? Como é esse processo criativo e essa produção?

Franchini – Suzane matou os pais em outubro de 2002, justamente no mesmo mês em que ingressei na carreira de investigador. Não tive contato com a rotina da investigação desse crime, mas seus acontecimentos, talvez pela dimensão que a imprensa deu a eles, foi acompanhado com muito interesse por todos os investigadores.

Havia muitas histórias paralelas, conversa de cozinha das delegacias, uma boataria descompromissada que me divertia muito, sobretudo porque eu era um recruta bastante curioso. Depois, quando fui escrever o livro e tive contato direto com o inquérito e o processo judicial, foi possível observar em algumas passagens a origem daquelas histórias.

Percebi que as tramas paralelas não eram absolutamente infundadas e que mereciam mais atenção.

Normalmente, quando me disponho escrever, tenho um ponto de partida e um final bem definido na cabeça. Só não está determinado o que acontece entre esses dois pontos, por isso acabo rabiscando várias versões para um mesmo livro.

CK – No livro Richthofen, o pano de fundo denuncia uma polícia eficiente, porém corrupta. Esse é um argumento ficcional para auxiliar a trama ou tem objetivos de exposição mesmo?

Franchini – É difícil para o leitor médio brasileiro, principalmente aquele que cresceu no conforto da classe média, lendo romances policiais clássicos, entender a ética da nossa polícia. Parece que a literatura tem uma obsessão doentia por heróis, e isso tem o poder de criar leitores alheios aos problemas sociais que o cercam. Seja na literatura ou no audiovisual brasileiro, naturalizamos a dicotomia entre bem e mal, mocinho e bandido e, atualmente o corrupto e incorruptível; noto que as histórias convencionais se esforçam em criar a polícia dos sonhos da classe-média, uma idealização extraída das melhores seriados americanos, quando muito de pulp noir. Tenho orgulho de todos os policiais que gostam de ler meus livros, porque as histórias, mesmo sendo ficcionais, são denúncias e o registro de uma realidade de trabalhadores ignorada pela sociedade. É um universo complexo, poderoso e desconhecido, já que os policiais são proibidos, por lei de denunciar os abusos que sofrem do Estado.

CK – Suzane Richthofen está sempre em destaque na mídia. O que você pensa sobre isso? Você acredita que todos merecem uma segunda chance, independente do que fizeram?

Franchini – Ela é a hipótese curiosa de alguém que jamais terá o direito de ser esquecida. Todos nós, ao longo da vida, passamos por situações que nos transformam e nos ressignificam, o que nos permite renascer diversas vezes para continuar a longa caminhada da existência de forma menos dolorosa. No entanto, há uma fixação perversa da sociedade por essa mulher, de modo que ela está condenada eternamente a ser quem foi na adolescência. Nós retiramos dela a oportunidade de morrer e reexistir, e gozamos com isso. Ninguém tem dúvidas: foi uma grande tragédia que destruiu uma família, mas apenas uma família.

A despeito de tantas outras milhares de famílias que desapareceram desde aquele 31 de outubro de 2002 em situações idênticas, escolhemos somente a Suzane para ser o corpo de um suplício eterno.

Para mim, o caso Suzane Richthofen ela é demonstração mais completa de como a sociedade brasileira é grotesca e violenta.

CK – Como você escolhe seus temas?

Franchini – Não tenho uma regra para isso. O primeiro e o último livro (“Ponto Quarenta” e “Matar Alguém”) nasceram de forma espontânea, recolhendo recortes do cotidiano. Já os livros da coleção Grandes Crimes foram o resultado de um trabalho conjunto de pesquisa com a Editora, uma experiência que me trouxe a maturidade literária que precisava para me afirmar como escritos.

CK – Conte-nos os bastidores dessas produções tão importantes para a literatura brasileira.

Franchini – “Ponto Quarenta” nasceu em um antigo blog que eu mantinha na Internet, onde contava minha rotina como investigador de polícia. Foi uma época sem muito rigor literário da minha parte, por isso a obra nasceu dentro desse ambiente caótico, sujo e confuso.

Quando a Editora Veneta disse que queria publicá-lo, eu até perguntei se não seria necessário fazer uma revisão para deixá-lo menos virulento. Graças a Deus o Rogério de Campos, o editor, preferiu publicá-lo da forma como nasceu.

A coleção Grande Crimes, por outro lado, tem uma lapidação profissional, direcionada a um grupo de leitores que foi crescendo com o tempo, conforme as obras eram publicadas. Foi o período mais divertido da minha carreira.

CK – Como profundo observador, narrador e apresentador de criminosos ímpares, você tem alguma receita que poderia contribuir para diminuir a violência espontânea?

Franchini – Acredito que a justiça social somente acontecerá no Brasil quando ocorrer uma revolução no nosso sistema de segurança pública, que hoje funciona com braço armado dos grupos políticos que ocupam os governos.

CK – Como é sentar e escrever uma tragédia baseada na vida real?

Franchini – Doloroso, mas ao mesmo tempo é fascinante. Invadir a vida de alguém e tentar entender as razões do crime é uma experiência que machuca, mas também engrandece.

CK – Como são os feedbacks das obras publicadas?

Franchini – Sempre uma grande surpresa. Como disse, eu não escrevo para o público convencional de romances policiais, e nunca esperei que meus livros pudessem ir além de uma literatura que tangenciasse o mercado literário. Os leitores que me abordam são, principalmente, policiais ou profissionais da área jurídica.

O livro da Suzane, em especial, toca sensivelmente o público adolescente feminino desde que ele foi lançado.

São jovens que, além de trazer uma curiosidade sobre a realidade que motivou o crime, também trazem pesquisas profundas sobre a família Richthofen. Qualquer mensagem de um leitor, mesmo aquele que não gostou tanto dos meus livros, é uma recompensa.

CK – As tecnologias auxiliam os autores contemporâneos?

Franchini – Quem trabalha com pesquisa, como eu, teve o trabalho bastante facilitado com o surgimento da Internet. Mas o específico da literatura, pelo menos para mim, é a transparência dos personagens. E para isso não precisamos de fatos fidedignos.

CK – Você tem algum autor favorito? Está lendo algum livro?

Franchini – Ultimamente tenho me atraído por livros sobre pesquisas históricas da sociedade, doenças, alimentos, tecnologia… obras que, originalmente, eram teses acadêmicas. Gosto também dos escritores russos do século XIX.

CK – Meu objetivo é incentivar a leitura e mostrar os Escritores do Brasil. Que recado você deixa para leitores e colegas escritores dessa imensa nação?

Franchini – Não se resuma ao que te cerca.

CK – Quais os projetos futuros?

Franchini – Perder os 6 quilos que ganhei na quarentena e voltar a ser desejado.

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